Dramaturgia

 Do Livro das Dinastias do Mar 
(texto original e dramaturgia de Marcabru Aiara)

Sinopse
O texto trata das relações arquetípicas de todos nós com o mar, relações de mistério, de medo, a devoção religiosa, mitológica e mística em diversas épocas e culturas, o folclore do mar, a inspiração artística, sem esquecer da relação simbólica estabelecida pela psicologia profunda (Jung), do mar como símbolo do inconsciente humano.
É quase um almanaque mínimo do mar em dramaturgia, em que essas relações da alma humana com o mar podem ocorrer na mesma pessoa, daí a suficiência e contentamento com duas personagens, e podem ocorrer em culturas  e épocas diferentes, porque são arquetípicas. Neste caso, a memória do marujo, sua sabedoria, sua fé e suas estórias perpetuadas pela tradição oral, fazem este percurso no tempo e no espaço desde o mundo antigo até a contemporaneidade, embora a narrativa seja feita quase em um tempo fora do tempo, e num lugar fora de qualquer lugar. As citações inseridas no texto, vindas de vários campos do conhecimento humano, teatro, poesia, música, filosofia, folclore, etc também cumprem essa função na dramaturgia de revelar na linguagem idiomas e sotaques de lugares e épocas diversas; o cenário, mínimo e simbólico, assim como o figurino (manufaturado e étnico, tribal), também atestam que esta dramaturgia ocorreu outrora, ocorre no aqui e no agora, e ocorrerá no porvir;
A dramaturgia insere-se na linhagem de suas irmãs, a psicourgia, e a teurgia, ou seja, o drama é realizado como uma magia, no sentido nobre da palavra, não como mágica, ilusão ou trapaça, mas como potência de co - elaboração de uma realidade nas consciências que seja inclusiva da alma humana, da alma das coisas, dos bichos, da natureza, da ancestralidade e do vir a ser.



Personagens 
Janaína – vestido branco de renda, cabelo comprido e solto, descalça. Flor amarela no cabelo.
Marujo – lenço na cabeça, tipo pirata, violão sempre nos braços, é um cigano do mar, artista, poeta, músico, vagabundo lírico, um pouco de sábio xamã, pois é filho de índia.

Cenário 
O cenário se resume em um baú, onde as personagens retiram seus adereços no desenrolar das cenas, e um toco de árvore, tipo de preto velho, simbolizando a floresta e todos os tipos de embarcações feitas de madeira. Representa tb as culturas dos povos das florestas nas zonas costeiras, como exemplo a cultura caiçara do litoral brasileiro, e de outras grandes civilizações marítimas, como os fenícios, os portugueses, etc. 



Cena 1
(Janaína sentada na praia onde mora, em cima de um baú, olhando o mar com nostalgia,  falando sem tirar os olhos do mar. Marujo com canivete picando fumo pro cachimbo, sentado no toco de árvore (simbolizando as florestas), pernas cruzadas, violão do lado. Luz de fim de tarde no centro do palco, alaranjada, já com o crepúsculo nos cantos do palco, luz azul e cinza pro crepúsculo nos cantos e fundos do palco, criando uma concha de luz crepuscular).

Janaína : 
Eu tenho medo do mar, moço. Das incertezas de ir e não voltar, daquele silêncio todo do fundo, sabe, aquela imensidão toda que nem cabe no nosso olhar. Eu sempre me perco quando tento olhar o mar inteiro, até meus pensamentos, sabe, parece que desaparecem na linha do horizonte, ou são carregados por alguma nuvem rala, esfarrapada, ou voam pra longe feito as gaivotas. Mas o que sinto não tem como se perder de mim não, já nasci com isso, viu ? Já vim na barriga de mãe sentindo esse tanto todo, desde o ventre que eu já me sentia toda sua, filha quase única, desde o  ventre do mar, essa grande mãe de tudo. Diante do mar me sinto toda nua, distante dele me sinto lua minguante, ou escura.
Marujo :
Eu te entendo, moça. Antes daquele silêncio todo do fundo do mar... já ouvi muitos gritos, lamentos, preces não atendidas; não tem só murmúrio de onda na beirada do mar não, tem muito sussurro também... de saudade.... e um terror calado, mudo, de um “batalhão de mil afogados”... tem mar que castiga, feito mãe.
Sou um cigano do mar, já corri muita água, de jangada, canoa, barco,  nunca tive domicílio, sou do povo do mar, o mar é minha nação; fui parido bem pra lá da arrebentação, em noite de tempestade, em mar aberto, como no poema de Castro Alves : “ventos, raios, tempestades, rolai das imensidades, varrei os mares tufão !”, sou filho de jangadeira índia, cabocla da mata mesmo, dessas matas de fronte pro mar, mata costeira, mas meu pai nunca vi nem ouvi falar, a jangadeira já atravessou o rio pra terceira margem, nunca me falou dele.
Janaína :
Meu pai era pescador, o mar já levou ele também....
Marujo :
Como dizem a velha marujada : “quem vive do mar morre nele”...
Janaína :
Tem muita saudade na beira do mar... eu queria ver ele voltando um dia, sabe, com o barco cheio de peixe... cheio de estórias pra me contar de noite, depois da janta. Era mãe quem tecia as redes, tudo na mão. Fazia toalha de mesa também, vestido, colcha, casaco. Aprendi com ela, mas rede nunca mais ela fez, nem eu vou fazer, nem rede de descanso. Ele me embalava nessas redes por tardes inteiras. Só se um dia ele voltasse... mas dizem que o mar quando leva quase nunca traz de volta... é feito tragédia no teatro.
Marujo :
Verdade, o mar sempre inspirou os poetas, os músicos, os pintores....  “ Homem livre, tu sempre amará o mar”... ahh, esse verso de Victor Hugo, é música pra marujada. E por falar em música...
(pega o violão e canta, devocionalmente)

(Jangadeiros – Guilherme Lessa)
São jangadeiros, jogam flores no mar, em seus cabelos, vem se emaranhar, são jangadeiros, vem do lado de lá, em seus luzeiros, onde brilha o luar, Janaína de jangada ê, Janaína de jangada, Janaína de jangada ê, rainha do mar.
Janaína :
Mainha cantava sempre pensando no pai : (ela levanta e canta com o marujo ao violão)
(Prece ao Vento, de Dorival Caymi)
Vento que balança, as folhas do coqueiro, vento que encrespa, as águas do mar, vento que assanha os cabelos da morena, me traz, notícias de lá; vento, vento, diga por favor, aonde andará o meu amor.
(A luz vai apagando, primeiro a luz laranja, depois a luz do crepúsculo, até o blackout – fim da cena 1)


Cena 2
(Janaína de vestido branco com um manto de crochê laranja por cima (trançado bem espaçado, feito rede, o simbolismo da rede, como se ela estivesse presa pelos seus próprios sentimentos), no mesmo lugar, sentada no baú, olhando o mar. Marujo pitando cachimbo, sentado no toco de árvore).
Marujo :
Mas o quê que a moça está buscando no mar, que tanto olha pra ele mas não se levanta daí ? Vou te contar, amor trazido pelo mar é regido pela lua, vai embora quando a maré vaza...

Janaína :
Já nem sei, sabe... um amor... meu pai voltando de canoa.... algum lugar pra ir.... o medo também me atrai... ou como se eu fosse encontrar a verdade sobre tudo e todas as coisas dentro do mar, em algum livro enterrado junto de algum tesouro, com todas as estórias do mar, dos pescadores, dos marinheiros e suas mulheres, dos piratas, e com o nome do meu pai nessas estórias, e a estória de sua última saída, suas últimas palavras... o som do seu suspiro derradeiro, guardado dentro de uma concha.
(Levanta, procura no baú, pega o tricô, senta de novo e começa a tricotar, com lã preta. E conclui (o marujo já está falando) : - Um xale novo pra mãe continuar seu luto.)


 Marujo :
No mar se busca de tudo, riqueza, ouro, luxo, sustento, profecia, destino, amores, promessas, entes queridos... às vezes o mar só devolve os corpos, às vezes nem isso. Já vi de tudo, já toquei em procissão, já joguei capoeira, já pulei sete ondas, já jurei voltar... tudo na beira do mar, já joguei flores brancas, vermelhas, amarelas (repara e toca carinhosamente na flor amarela nos cabelos de Janaína), já dormi na areia, já fui capitão, já vi sereia virar mulher inteira, já vi mulher virar peixe pra sempre, ou virar comida de tubarão, ou virar assombração depois do afogamento. Mas nunca vi a rainha do mar perder seu trono (neste momento Janaína pára o tricô, e olha com respeito e admiração para o marujo), ela tem muitos nomes, muitos altares, muitas embarcações desde tempos remotos. Sua vontade é soberana, governa com a lua mares e marés, fartura e miséria, agouro e fortuna. Governa reis e rainhas, não há um só império na história dos homens que não dependa, de uma forma ou de outra, da imensidão do mar. Moça, quer um conselho ? – Se chegar, permita. Se partir, permita.
(fim da cena 2)

Cena 3
(menina sem mãe na terra)
Luz azul neon ofuscando a plateia, atmosfera onírica, e gótica. Janaína com uma boneca sem cabeça na mão, descabelada, sozinha em cena, cenário vazio.
Marujo (fala em off):
O mar não descansa, não dorme, sempre em movimento feito um balé das águas, uma dança perpétua, mas sem condenação, perpétua apenas. Mas os homens precisam descansar, alguns dormem, outros sonham, mas nem sempre a morte é um descanso, ou o sono, ou um sonho.
Janaína :
Quando crescer quero virar oceano. De azul imenso e sem beirada. Tanto quanto verde, espelho d’água do céu. Oceano sem ninguém, só de bicho, mato de seiva, sereia. De minha mãe senhora d’água. Senão o mar espanca. Mar virado que arrasta depois do fundo, beijo de areia seca na boca, água que arde. Não adianta chamar da praia que não volta. Ilha também não pode ter. Oceano sem nome também. Só de maré, de todas as luas, mar de ninguém senão revira. Só de Senhora.
(E canta a capela )
Acalanto (Guilherme Lessa Gonçalves)
Eu não tenho mais medo do escuro, porque é escuro no fundo do céu, Eu não tenho mais medo do escuro porque é escuro no fundo do mar, Quem mora no céu é Deus, Ele mora no fundo de lá, Quem mora no mar, é rainha, sereia, minha mãe Yemanjá, Quem mora no céu é Deus, Ele mora no fundo de lá, Quem mora no mar, é rainha, sereia, minha mãe Yemanjá.
 Cena 4 
(A Fúria do Mar)
Marujo 
(durante essa fala, Janaína faz um “balé gestual”, abre os braços como um cristo feminino, se ajoelha e ergue os braços ao alto, deita com as pernas abertas arreganhadas em posição sexual,  deita em posição fetal – uterina)
- Que o Deus do fundo do mar decrete sua tempestade, e avise pelos seus devotos mais íntimos ao mundo dos homens que de tempos em tempos prevalece a severidade, que de tempos em tempos Yemanjá é mulher de amor e se entrega em corpo de mulher inteira, feito morena de seios fartos e quadris largos e coxas grossas, mas nenhuma súplica lhe alcança, nenhuma prece lhe comove, nenhum ritual lhe satisfaz, nenhum presente ofertado ao mar é aceito de bom grado, nem é aceito de forma alguma, toda e qualquer oferenda é devolvida feito uma carcaça, um corpo sem vida, e precipitam-se as águas da purificação e espancam torrenciais, e os rios retomam seus cursos originais, sucumbem cidades, igrejas e coronéis, neste tempo não há partos, são tempos de água que mata, fogo dos temporais, morte bruta, morte súbita, Netuno desperto no fundo do mar, Poseidon também é Deus de coroa e reinado...
Cena 5
(O tantra do mar)



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