O Canto Mais Sombrio de Vossos Pêsames (de Marcabrü Aiara)

Me sinto livre entre os loucos, entre os encarcerados, os proscritos, me sinto bem entre
os malditos, entre aqueles sobre quem recaem as maldições hereditárias, tenho uma
empatia profunda pelos que perderam tudo, por quem nunca conheceu o próprio pai, ou
por quem perdeu a mãe ainda cedo, e ama os bichos como se fossem sua própria família
de sangue.

Entre os loucos o meu inferno é colorido, entre suas cabeças ocas e suas línguas
enroladas de Gardenal, dentro de seus irritamentos internos, suas irritâncias, suas bocas
tortas, suas retinas feito as janelas embaçadas de almas em tormento, entre os loucos o
meu cantar é de alguma esperança, às vezes o meu andar é fúnebre e arrastado feito um
deles, às vezes o meu delírio é tamanho que tenho medo de mim mesma, e minha dor
muitas e muitas vezes é inconsolável, que só com um corte profundo na minha carne,
somente com minha integridade física mutilada, só fazendo escorrer meu próprio sangue
com um talho nas veias é que esqueço do que não pode ser esquecido, como uma dor
escrita na alma com um fogo eterno da danação, um cárcere privado em mim.

A catarse é um valão a céu aberto, uma fratura exposta de nossas frustrações, é quando a
gente acorda só pra cuspir e deita de novo mas não dorme, uma cova rasa com as aves
negras famintas pelos nossos restos, uma ferida que o cão não lambe, um medo de altura
só por estar de pé, por isso rastejamos para não cair, a catarse é teu lixão, teu esgoto
pessoal, tua morbidez, tuas derrotas obesas, um ataúde na tua justa medida, teu cofre de
misérias arrombado.
E eu tenho muito medo da delinquência acadêmica dos psiquiatras. As psicólogas me
são indiferentes, com suas doces ignorâncias. E da ciência tenho traumas horríveis,
tenho cicatrizes com nome e sobrenome de suas autorias, a autoridade médica na
maioria das vezes é uma invasão de território. Uma arma química de destruição em
massa, sobre a horda alucinada dos loucos e alienados. O fármaco é a moeda do
psiquiatra. O surto é sua banca de negócios. O louco é uma margem de lucro para os
escravocratas.

Mas a loucura não é nada romântica, são dezessete facadas na própria barriga para
ostentar o sofrimento, uma escrita em garranchos analfabetos no próprio corpo com
sangue e perplexidade, um poema ogro sobre sua dor.

Flores raras da morte, que nascem quando morre alguém no seu coração, ou quando
todos os amores morrem no seu coração, quando morre toda forma de vida numa terra,
um holocausto num pedaço de chão, um pedaço de pão que se nega, uma mendiga velha
e louca que você quase se torna, quando não sobra nada nem mesmo uma migalha
miserável, nascem assim as flores raras da morte, nascem tortas, entregues, quase uma
hoste de espinhos e pétalas estranhas, flores raras da morte nascem nos hospícios, nos
manicômios, no seio das famílias, flores raras da morte exalam seus odores que não são
perfumes e intrigam as almas nunca distraídas.

A loucura nasce como uma flor rara da morte, cujas raízes, deitam - se entranhadas pela
sua alma feito mármore lápide.
Um Dante preso no inferno mais abissal, não o Dante da Divina Comédia inteira, mas o
Dante só do inferno, escrito por suas próprias mãos, um sofrimento na alma que cava
um abismo profundo entre você e seu próprio corpo, um inferno Dantesco, um monstro
épico no espelho do banheiro, um Fausto habitando também na sua co - morbidade, uma
insanidade às claras na sala de jantar, na sala de aula, na sala de espera da consulta, um
corpo para ser expurgado do seu sofrimento interior, uma paisagem de dor infinita, sem
água potável.

De Marcabrü Aiara, uma dramaturgia inédita

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