Dramaturgia

Sou atriz porque sim. Não foi uma escolha racional. Na verdade é uma decisão diária, não desistir a cada recusa, cada não que ouvi até hoje, cada email não respondido, lembro de cada teste que não fiz, seja por medo, insegurança, ou imprevisto mesmo. Até por falta de grana pra passagem.
Mas atriz, sim. Entrego meu corpo pra cada nova personagem (sinos de igreja - véu de santa, forró no triângulo - chapéu caipira), (crescente) minhas coxas, meus seios, minha libido, me entrego inteira como em um romance, me apaixono sim pela personagem, (sussurro procurando a personagem) mudo minha voz diante dela, perco meus limites, sonho, deliro, invento, exagero (gargalhada cênica), morro de ansiedades.
O teatro é meu tantra : (colocar o vestido, soltar o cabelo, passar lápis, sombra, passa batom cor quente)
Derramo de minhas entranhas meu gozo, farta e generosa, como uma libação em teus lábios, faço de meus amantes um Deus de chifres eternamente embriagado, e tua sede é demente, porque mesmo você todo escorrido e lambuzado de minha libido, anseia desesperado por mais derrame meu, feito Baco insaciável, feito  errante no deserto em minha flor de cactos , e já desfalecida em teus braços e beijos, tu ainda sacia teu tanto, tua enorme volúpia, teu imenso despudor, tua divina embriaguez e querência, tua sede de mim, de minha intimidade fêmea fez tua fonte, e volte sempre, volte sem medo, bebe e te nutre, te embriagues, brinda meu doce derrame de fêmea em teus lábios.
(Música "Barba", letra e música de Marcabru Aiara)
Até estar em cena, numa espécie de transe da arte, o Tao da arte, o arrebatamento no palco, a "potência do todo" transbordando da minha alma, um derrame do meu ser integral feito um gozo a cada passo no espaço cênico, como uma jornada para dentro de si mesmo, do outro, da vida, do mundo.
É feito um templo de exuberâncias de tudo o teatro.
Mas sem você o palco fica sempre vazio, parece que as cortinas se fecham para sempre, escurece a cena, o terceiro sinal nunca toca.
Sem você nenhuma maquiagem é suficiente, não há personagem, nem atriz, e ouço as vaias no meu próprio coração. De um amor que nunca teve estréia, nem elenco. Apenas um monólogo mórbido para mim mesmo, feito as sombras insignificantes das coxias. O que nos ilude é um teatro mal feito. A vida é maior que a arte.
(Trilha sonora instrumental)
E ainda vou trocar de nome, de endereço, também curto uma troca de casal,vou trocar de roupa na sua frente, vou te dar o troco sim, te pagar na mesma moeda, vou trocar de sexo, vou trocar uma idéia com as manas, estou trocando o almoço pela janta, trocando o dia pela noite, vamos trocar figurinhas, trocar o figurino, trocar de identidade, troco uma vida mais ou menos por um único momento de plenitude no palco, e para seu além.
Sou atriz. Não é só pelo cachê, não é só pelo glamour, não é só pela euforia do camarim, nem sempre há flores, amantes, ou estréias.
A solidão agora cruza meu caminho, faz morada no meu chão, como semente, e dará sombras para minha alma, em breve, porque minhas lágrimas regam as noites intermináveis desse imenso quintal de mundo.
Embora eu seja bela, e jovem, e meu corpo desperte a luxúria nos bichos e nos homens, a solidão torna impregnada minha alma de sua presença.
Embora me deite nua para o prazer inútil, não partilho minha alma. Meu coração está seco, embora vocês me beijem com volúpia.
(Trecho do monólogo Atriz, de Marcabru Aiara)

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